Friday, November 4, 2011

Algumas notas sobre o reencontro com «o Galo»


O sr. Abílio de Sousa, pessoa conhecidíssima em Romaride inteiro por «o Galo», sempre foi muito atento às novidades da terra, naquele seu jeito de mostrar interesse, com um sorriso diria ora mais airoso ora matreiro. «O Galo» debicava sem que se desse por isso. Não que fosse de descaramentos como alguns e algumas. Ou de grandes intrigas, que essas vêm muitas vezes de onde menos se espera. Não, aquilo era alma de repórter. De grande repórter, isso sim.
Na verdade, eu próprio fiz ontem todo o gosto em divagar novamente com ele, aqui por estas nossas velhas ruas. Foi um puxar da memória, pois como em termos, modos e tempos já dei a entender – a quem o não soubesse ainda – , do «Galo», a memória é tudo o que resta.
Comecei por me dirigir à Praça, desde sempre o seu lugar de eleição. Aproveitando para ilustrar um pouco alguns aspectos da vida de então, havia os homens da praça, que às vezes iam à taberna, e os da taberna, que às vezes vinham até à praça, sobretudo ao domingo. Não se pense que os homens da taberna, apesar de em geral de manifestarem extrema devoção ao vinho da casa, fossem gente pouco trabalhadora. Pelo contrário, os da Praça bebiam menos mas também trabalhavam menos, velhos e novos. Certamente que alguns outros frequentavam a taberna quando tinham dinheiro, e a praça quando não tinham, mas esses eram de longe os que menos vida orientavam. Daí concluindo eu desde esses tempos que mesmo entre a praça e a taberna um homem tem de saber escolher a sua vocação.
Na Praça reinava «o Galo». Permanece de certo modo a sua Praça. Não me estranharia quando ali cheguei topar de repente com ele, descontando um ou outro pormenor que nos recorda que os tempos são outros. Para dar um exemplo, julgo que concordarão comigo quando digo que uma das principais novidades, por estranho que possa parecer, é que antigamente era mais movimentada de trânsito automóvel. Aquele era o centro vital da povoação, e local de passagem obrigatório. O trânsito não seria na verdade muito, mas à época impressionava: quase só camiões de mercadorias e autocarros, talvez um ou dois por semana, para regalo dos rapazes. Hoje não é assim, obviamente, devido às proibições de circulação.
Algumas das casas mais bonitas estendem-se, como antes, pelo perímetro da Praça e ruas adjacentes, felizmente. Íamos discutindo isso, quando nos detivemos à porta de Mestre Candeias, grande figura da música romaridense. Que saudades das sessões da Ligeirinha (quem se lembra?), uma formação composta por alguns dos melhores músicos da Banda Filarmónica, sob a batuta do saudoso Mestre Candeias. O sucesso era tanto em dois ou três salões de baile que logo se improvisaram que as mães de família chegaram ao ponto de alegar questões de moralidade junto da esposa, tentando pôr fim aos bailaricos. Algum fundo de verdade haverá nisso, pois Mestre Candeias era bem conhecido por suas tiradas. Entretanto, aproveitei para dar conta ao «Galo» das grandes melhorias que se vêm verificando na nossa Filarmónica, a todos os níveis. Mas é preciso dizer que não será fácil fazer nos nossos dias algo que supere a verdadeira sensação que constituiu à época a brilhantíssima Ligeirinha, irrelevando um ou outro excesso.
Estas e outras diversões eram relativamente esporádicas, e sobretudo bastante modestas em termos de gastos. Essa modéstia também se expressava em acessibilidade a todos quantos quisessem participar. Algumas pessoas mais humildes talvez se sentissem um pouco duvidosas em aderir a determinadas festividades, mas não havia um espírito elitista ou de segregação por questões da conta bancária, como há hoje. Relembrámos a propósito os casos do Mário Tropa, e de toda a sua família, ou os Bairradas, como exemplo, pessoas que notoriamente tinham uma vida de dificuldades, e que no entanto faziam um especial gosto em assistir aos espectáculos musicais e teatrais, ou outros, que se produzissem na terra. Falo destes casos em especial porque o meu pai fazia questão de juntar à sua mesa estas famílias no dia do Peditório dos Martírios. É uma relação já muito antiga, embora fosse confessando ao «Galo» que quando era bem jovem cheguei a ser obrigado a sentar-me à mesa num que noutro desses jantares, porque eu apreciava a máxima «os Homens são todos irmãos», mas não a compreendia completamente. Foi uma lição que me ficou para a vida.
Alguns dos filhos dessas famílias são actualmente donos de algumas das melhores moradias que tivemos oportunidade de apreciar, algumas até «históricas», que as há bem bonitas em Romaride.