Saturday, August 3, 2013



[A colina, a colina.
Um animal roedor, talvez…]
Ele era [não, não, a colina, mas ele era] um ouriço. A colina. Ele, era um ouriço. Forragear nos barracões, raspançar pelo enferrujado dos quintais, recolhendo depois para casa, a meio da colina. Sim, a colina. De manhã, desce a pé à povoação, resplandecente contra o sol. Crianças, sapos, poças, moças, trapos, hortas. Resplandecidos e belos, como sempre assim é. O jovem e esquivo ouriço de nada quer saber: Porca miseria, ó porca miseria! Põe um palmo de testa fechado e queixo recolhido, fecha os olhos e ofega, e então dobra e junta e pende os braços e as mãos e os dedos virados para cima, sacudindo-os. E declara: La machina! La machina!
Lá máquina. O sucateiro vai por instantes já de motoreta. Obviamente, com atrelado. De sucata (e para a sucata); de lata (e para a lata). E de todo o tipo de materiais muito pouco ou nada preciosos, para todo o tipo de materiais não preciosos, porém por ouro (ó cabeça submersa!). Cabeça de ouriço.
Antes de o sol, porém, viera a chuva. Sobre os destroços, que ficaram para tufo sujo e irradiante de vapor e orvalho, à toca do jovem esquilo recolector. Logo sobe da povoação uma mulher verdadeira, com um peixe inteiro e cru. A espantada cabeça de antena enferrujada, meio sem mais nada, observa tudo: uma sequência de gestos naquela espécie de película efémera e fictícia dos melhores alvoreceres.
E deixa-a partir em paz, como veio, sentado no chão e de costas com costas o tronco mais calejado. Sim, pois, forte e feio, os tapetes, para a máquina, forte e feio, até o frio molhado lhe repassar bem a couraça de porco-espinho.
[Então come do peixe e é que desce à povoação.]
Os Rádios CB são capazes das mais inesperadas proezas. À noite, as ondas perdidas dos Rádios CB podem atravessar facilmente as fronteiras de países amigos ou estranhos, e mesmo rasgar a remota estratosfera de outros continentes, de acordo com discretos mas idóneos testemunhos. Diga-se que para alguns aficionados os Rádios CB são nada menos do que uma das grandes maravilhas de todos os tempos, a peça mais importante do respectivo veículo e o mais superlativamente singular artefacto da história da comunicação humana! Com todo o a propósito, havia muito que o Ferro-Velho era explorador do filão: do zebre garimpo, muito além do riquexó, sonhava em ter rádio de cidadão. Poucos, porém, lhe reconheciam faculdade e mérito. A própria colina! Sim, que as pequenas peças lhe sucumbiam à repentina corrupção [a colina!], e as maiores eram disto muito espantadas, como que agradecendo, se deviam, que tranquilamente apodreciam.
Já nalgum íntimo daqueles dois bencus altivos, soavam as palavras: «Vitória, vitória, seja para o menos cansado, estafado!». Pecavam inocentemente por defeito, todavia, ou não fosse que milhões e milhares de colinas depois, quando homem, máquina e amuleto se fundem finalmente em trem de tiro e praça, ainda a derradeira batalha estivesse por travar.
Lixo e transístores. Ao longe, sempre lixo e transístores. [E algum despontar de Canção Napolitana! ou vozes melosas?]
A motoreta autofalante chocalhava furiosamente, quantas vezes já, por ruas, vá, mortas de sol ou nada de anormal, mas ainda resignadas ao espanto algo rarefeito das ondas curtas e ondas médias do Rádio CB, mais a competição a dois tempos do roncar do motor. Um animal selvagem. Largos, casas, portas, calçados, telhados, beirais, cornichos e antenas, e cabeças de pardais. Dão-lhe sucata, dão-lhe comida, dão-lhe água fresca.
Ele é ruivo.
Peças e transístores.
– Bom dia, você [nome?] tem por aí sucata?
– Bom dia. Tenho. Já falaste para Itália?
– Ainda não – ri-se, desconfiado – mas como é que sabe?
– É hoje?
– É. Como é que você sabe?
– Bom.
– Bom. É hoje. E meta a Itália no cu! [Ou a sucata… Sim, forte e feio!]
Mas o homem vai para dentro, buscar apenas plásticos e cartão dobrado e enfeixado.
– É o que tenho agora para ti, jovem.
O ruído do motor, as sucatas, os dedos no sintonizador do rádio CB, buscando as mais altas frequências, passando de posto em posto, de rua em rua, o esquilo, o som de lata espalhando-se no vazio, a motoreta. As pessoas dão-lhe fruta; é surpreendido a falar para o microfone: não tenta compreender, aceita.
– Bom dia. Tem sucata?

Sobe até casa, depois da longa jornada de trabalho. Aí prepara o magro jantar, abandonado ao crepúsculo. Sem pressas, mas sem pausas também, mastiga mecanicamente a comida, mais absorto ainda do que é normal entre os animais roedores. Deita-se na rede e dorme um pouco, suspenso das luzes da povoação lá em baixo. Consegue também ouvir algum algaraviar disperso que, entregue à quietude e à segurança da altitude, sempre lhe acalma os nervos e distende os músculos.
Respirando agora mais profundamente, vai-se sentar, como que reclinado, num monte de pneus e estofes de automóvel: deste lugar privilegiado pode contemplar a seu bel-prazer o topo da colina. Às horas que são, evidentemente, não é propriamente possível vê-lo lá em cima, pelo que agarra uma maçã, deslocando-a à sua frente ao comprimento do braço, até a fazer coincidir exactamente com o desenho do topo: conhece os seus contornos e localização perfeitamente, de cor. Sem que nada o fizesse prever, porém, resolve puxar de uma outra maçã, que delas não vinha desprovido, rolando a primeira para junto do pé esquerdo, no chão. Depois, acaba por prescindir também do segundo pomo, atitando-o desta vez para a direita. Felizmente trouxera um alguidar cheio. E sem mais esperas, logo esfrega e limpa à mão livre uma terceira maçã, a qual trinca duas ou três vezes com satisfação, mas sem contudo, e subitamente, deixar de a fazer rebolar para junto da que em primeiro escolhera. Ficou afastada desta cerca de um décimo da distância que a separava do, tão intacto como o primeiro, segundo fruto. Como se tratasse de pensamento ou mania por resolver, retira, de forma resoluta e assentada única, uma quarta e uma quinta maçãs, que displicentemente mordisca num ou outro ponto. Destas duas, a primeira acaba por ficar por volta dos quatro décimos, na já exposta razão de medição de distâncias entre maçãs, e a segunda a cerca de sete décimos.
Por fim levanta-se e, tendo o cuidado de não esquecer o alguidar, vai ao encontro da máquina. A primeira coisa a fazer é ainda descarregá-la da recolha do dia, procedendo também a uma primeira selecção: uma enxada partida, um assador enferrujado, um porta-cabides e várias panelas seguiriam para a secção dos metais; uma máquina de confeccionar pipocas avariada, para a oficina dos electrodomésticos; umas asas de fada de criança, para decoração do estaleiro; cinquenta e dois centímetros de tubo de cobre, para os metais preciosos; pequenas peças diversas, para o respectivo monte; e o mesmo para plásticos, papéis e cartão. Olhando uma última vez detidamente para o topo, resolve-se então a iniciar a subida.
De tão aguardada, esta, e apesar da luz dos faróis, acaba por sair meio às cegas dos amontoados de entulho que ensopam todo o arraial. Mas rapidamente, à medida que os adereços naturais da colina vão substituindo os artificiais da lixeira [ ,, escamas putrefactas da civilização humana!…], o trepador vai-se fazendo ao trilho serpenteado. Ao longe, o movimento oscilante daqueles focos, que iluminam extensões cada vez mais elevadas da colina, não passa despercebido.
Como seria de esperar, o expedicionário leva já o rádio ligado quando chega ao topo. E como sempre, as vozes surgem confusas e fugidias; mas tinha a esperança de que, com a ajuda dos ares favoráveis da noite, do benefício proporcionado pela altitude e uma combinação favorável de factores atmosféricos previstos para as horas que se seguiriam lhe permitiriam tirar o máximo partido do aparelho de rádio.
A belíssima língua italiana tinha normalmente posto certo em determinadas zonas do mostrador de sintonização. Assim que se assegurou de onde estacionar o carro, rodou com muita prudência o sintonizador, as estrelas por únicas testemunhas, para o ponto aproximado do primeiro décimo do espaço disponível de frequências radiofónicas. Os italianos apareciam sobrepostos por outros, mas ainda assim bateu muito pacientemente toda essa zona do mostrador, num sentido e depois no outro. Rãs coaxavam nas poças, parecendo querer dizer do seu solidário pesar, que, porém, algum tempo mais tarde, como que meia hora, se tornaria sinal espantoso mas evidente de não pequeno menosprezo.
Mas a resposta terá vindo com uma mudança estratégica de localização, a qual possibilitava até certo ponto corrigir as dificuldades de sintonização das ondas curtas. De novo a agulha passa pela mesma zona, por uma vez com algum sucesso. Ouviam-se conversas em bom italiano, só desfeitas ocasionalmente por sons agudos e prolongados [Estrelas!]. Restando ainda as zonas dos quatro e dos sete décimos, foi curiosamente a meio do espectro que ressaltou a mais bela das vozes transalpinas, mas de facto bellissima de ouvir, não fosse a presunção, ou a ideia, para sermos mais justos, de que para aquela frequência específica não era muito adequada a localização do veículo…
A chave roda, pois, na ignição, e os faróis rompem a penumbra. Com não pouca ansiedade, a motoreta vai ziguezagueando, quase em ralenti, em busca dos melhores pontos de escuta. Resolve-se então a estacionar numa parte algo inclinada, quando aquelas vozes, pois já outras se tinham juntado à primeira, se faziam sentir com uma nitidez quase assustadora, para quem as escutava de súbito tão próximas e reais.
Naturalmente entusiasmado com o sucesso, o sucateiro vai de imediato pelo microfone, arrancando-o com tal força que o atira ao volante, de encontrão precisamente à zona do botão talk – por certo o primeiro e o menos desejado som que haveria de emitir para Itália. As argolas preto vinil descritas pelo fio que une o microfone ao rádio continuavam a oscilar, suspensas. E cada vez com mais intensidade, na verdade, à medida que o nosso se preparava para de novo falar com os italianos, e a carripana, traseira apontada a uma esquecida cisterna, escorregava desesperadamente terreno abaixo. De facto, com o entusiasmo e a precipitação iniciais do condutor, ela não havia sido convenientemente travada!
Nisto tudo se prepara o referido atleta para nova tentativa [ – Ciiaaaaoooo….] de contacto. A espiral frustrada que dá forma ao fio fica totalmente suspensa no ar, todavia, como que assegurando-se da condensação das palavras e do tempo. Até ao exacto momento de se expandir em todas as direcções e com toda a violência, no estrondo do embate.
A mal-avisada cratera havia sido aberta em tempos idos, para exploração e posterior serventia de águas, por meio de um colector, a uma antiga pedreira que se localizava um pouco mais abaixo, na vertente oposta à que trouxera tão desafortunado radioamador.
Assim às primeiras, e bem a propósito, o aparelho de rádio apresentava os seguintes problemas técnicos: permitia receber sinal, mas não emitir; um dos altifalantes trabalhava normalmente, enquanto o outro fazia-o de forma intermitente. Perante isto, do seu lugar de comando, o pobre rapaz, revoltado, introduz a primeira velocidade na consola selectora de marchas e acelera a fundo, tal o desespero. Apesar de o motor corresponder à fúria do operador, o veículo não se convence a aproximar sequer da parede adjacente, pois na verdade o eixo traseiro estava completamente arruinado e a roda da frente tinha uma inclinação de cerca de quarenta e cinco graus em relação ao solo, deu-se ele conta ao abandonar a cabine.
A cratera era no fundo um poço quadrado, de quatro ou cinco metros de profundidade, a medida das paredes de cimento liso. Os sons difusos eram bonitos, as pequenas luzes nocturnas também, interrompidas, para mais, pelo aconchego do idioma itálico, pois d’eco se tornava mais belo gravado, em receptáculo a céu aberto e fechado.
Uma e outra maçã foram passando, e ouvia o coaxar das rãs ali nas poças, poderia viver de insectos e de rãs, ouviria rádio [pelas manhãs], responderia ciao (às coaxantes rãs). O velho, pobre ouriço. Diga-se porém que foi com o barulho de vozes a aproximarem-se que verdadeiramente se sobressaltou. Pensando à velocidade da vertigem, logo desfez à navalha os tapetes e carpetes em tiras. Amarrou-as e atou-lhes na ponta uma pedra, a fim de alcançar um velho guindaste.
Subiu ainda à borda do poço, sem no entanto conseguir esquivar-se aí à assistência. Resplandecente contra o sol, nos dias seguintes, quer em muitos mais que se lhes seguiriam, sorri de vergonha, e sem qualquer mostra de vontade, ou coragem, de claramente falar como para Itália falara.