Tuesday, May 10, 2016

Uma teia de aranha


Os documentários televisivos sobre o mundo natural ocupam desde sempre lugar cativo nos recônditos da minha alma contemplativa. Ora doce, ora amarga e cruel, a maravilhosa tela da vida apresentada nesse formato continua em muito a ser a melhor companhia de sofá para o homem espiritual, mesmo no século XXI. Mas tempos houve na minha vida em que assistir ao BBC– Vida Selvagem era como ir uma pessoa à missa. Encontrar-se com o divino, comprar pão e tremoços, tagarelar com os vizinhos, apreciar as fatiotas. Vontade houvesse, claro está, de abandonar a cama a meio da manhã.

 Transmitido religiosamente à hora de almoço, mais água mineral menos preguiça, aquela celebração domingueira ia conseguindo operar em mim o milagre de sintonizar pecado e graça, culpa e maravilhamento, bizarria e subtileza. Um pouco como o professor Marcelo, mais à noitinha, naqueles comentários que viria a deixar quando lhe aconteceu a despromoção – ainda que com menos violência e instinto animal, o BBC.

Ora bom. Se é verdade que a disposição humana para aceder ao divino é mais antiga do que o BBC – Vida Selvagem, não deixa evidentemente essa disposição de ser anterior também à missa na aldeia. Evidentemente. Pode até o meu ser mais caso de indisposição para aceder à missa na aldeia… mas há qualquer coisa a montante: uma predisposição, podemos dizer.

Seja o que for, o que eu dou é às vezes uma volta aos pinhais, ou um passeio pelos campos. Ouvir as cigarras, apalpar o cu às pinhas, cheirar violetas e giestas. E não necessariamente neste sortido de correlações. Porque aí está a essência da paródia toda, a descoberta de que muitos são os caminhos da terra, e enormíssimo o Céu. E principalmente de que de um domingo por semana é sempre tempo. Podemos escrever.

Então, não me canso de lembrar à juventude que há muito mais vida selvagem nos nossos pinhais do que se imagina. Ainda no outro dia vi isso num carro que estava ali parado, num recesso. Mas eles retorquem Ah, lá agora. E eu digo Sim, grandes bestas. E eles Grandes como? E eu Como lobos, e javalis. E eles Ahhh! (São parvos.) Eu neste ponto tenho de confessar que ainda não os vi, certamente por falta de sorte. Mas nem preciso: os jovens talvez preferissem dar por aí de caras com um urso polar ou uma zebra africana, mas para os devaneios do caminhante solitário basta uma singela teia de aranha.

Passa um corvo, a aranha espera e espera, ou tece e tece, a gente espera e espera, ou tece e tece, o vento amaina um bocadoo sol e tal, mais o diabo a sete… e ei-lo, nasce o documentário.

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