Os documentários televisivos sobre o mundo natural ocupam
desde sempre lugar cativo nos recônditos da minha alma contemplativa. Ora doce,
ora amarga e cruel, a maravilhosa tela da vida apresentada nesse formato
continua em muito a ser a melhor companhia de sofá para o homem espiritual,
mesmo no século XXI. Mas tempos houve na minha vida em que assistir ao BBC– Vida Selvagem era como ir uma
pessoa à missa. Encontrar-se com o divino, comprar pão e tremoços, tagarelar
com os vizinhos, apreciar as fatiotas. Vontade houvesse, claro está, de
abandonar a cama a meio da manhã.
Transmitido
religiosamente à hora de almoço, mais água mineral menos preguiça, aquela celebração
domingueira ia conseguindo operar em mim o milagre de sintonizar pecado e
graça, culpa e maravilhamento, bizarria e subtileza. Um pouco como o professor
Marcelo, mais à noitinha, naqueles comentários que viria a deixar quando lhe
aconteceu a despromoção – ainda que com menos violência e instinto animal, o BBC.
Ora bom. Se é verdade que a disposição humana para aceder ao
divino é mais antiga do que o BBC – Vida
Selvagem, não deixa evidentemente essa disposição de ser anterior também à
missa na aldeia. Evidentemente. Pode até o meu ser mais caso de indisposição para aceder à missa na
aldeia… mas há qualquer coisa a montante:
uma predisposição, podemos dizer.
Seja o que for, o que eu dou é às vezes uma volta aos
pinhais, ou um passeio pelos campos. Ouvir as cigarras, apalpar o cu às pinhas,
cheirar violetas e giestas. E não necessariamente neste sortido de correlações.
Porque aí está a essência da paródia toda, a descoberta de que muitos são os
caminhos da terra, e enormíssimo o Céu. E principalmente de que de um domingo
por semana é sempre tempo. Podemos escrever.
Então, não me canso de lembrar à juventude que há muito mais
vida selvagem nos nossos pinhais do que se imagina. Ainda no outro dia vi isso
num carro que estava ali parado, num recesso. Mas eles retorquem Ah, lá agora. E eu digo Sim, grandes bestas. E eles Grandes como? E eu Como lobos, e javalis. E eles
Ahhh! (São parvos.) Eu neste ponto tenho de confessar que ainda não os vi,
certamente por falta de sorte. Mas nem preciso: os jovens talvez preferissem
dar por aí de caras com um urso polar ou uma zebra africana, mas para os devaneios
do caminhante solitário basta uma singela teia de aranha.
Passa um corvo, a aranha espera e espera, ou tece e tece, a
gente espera e espera, ou tece e tece, o vento amaina um bocadoo sol e tal, mais
o diabo a sete… e ei-lo, nasce o documentário.
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