Thursday, January 26, 2012

Carta a mim


Venho por este meio protestar junto de minha excelência por ser tão vaidoso na minha modéstia. Lamento o tempo que passei olhando as flores crescer. As flores que são também as obras dos homens, em especial as que tive a vaidade de ajudar a cultivar no nosso quintal, na nossa Eiras de Sabaio. Sou vaidoso.
Protesto junto de minha excelência, por não dar tanta importância à remuneração financeira como alguns dos melhores de entre nós, políticos e classe dirigente em geral. Esses sim, são humildes. Não têm a vaidade ou a ambição pessoal de trabalhar para ver realizados os sonhos dos seus concidadãos. Eles, ou alguém por eles, parece querer fazer crer que só o dinheiro interessa, ou por ser muito, ou por ser pouco. Não terão maiores ambições.
Protesto junto de minha excelência por ser tão vaidoso, e inclino-me perante a sua modéstia. Eu tenho a vaidade enorme de esperar realização pessoal para mim e para os meus concidadãos. Se falasse em remunerações em vez de sonhos realizados, se tivesse cara solene em vez de mostrar a melhor face às dificuldades e responsabilidades, seria humilde. Mas não, ainda tenho a vaidade de sorrir, na cara e por dentro, no coração. Protesto por não aprender com os melhores a ser humilde.
Protesto junto de minha excelência por as minhas ambições serem muito diferentes de ou ter muito dinheiro, ou de querer parecer que não tenho muito dinheiro, ou ambas as coisas ao mesmo tempo, que parece ser possível na cabeça de alguns. As minhas ambições não têm é nada a ver com dinheiro, e essa modéstia é hoje em dia é um luxo e uma vaidade. Eu deveria portanto ser mais humilde.
Protesto por tudo isto junto de minha excelência, o vaidoso.

Humildemente,
Francisco Aires Marchante (Presidente da Junta)

Friday, January 6, 2012

O trabalho numa quinta nunca acaba, entre rotinas entediantes e incidentes sem significado, agora no tempo gasto com reparação da cancela, de onde, ao longe, vejo um grupo de americanos aproximar-se. Acabei depois por não perceber bem se eram uma espécie de arqueólogos, se geólogos,, ou algo ligado ao turismo ou à agricultura ou a que «projectos»,  porque o vereador também la vinha, e ele vem sempre mais do que disposto a apostar em «projetos», a mostrar «projectos» ou a falar de «projectos», de maneira que de vez em quando aprece para aí todo o feitio de tropa. Mas americanos deviam ser. Gostei especialmente duma, bonitinha, olhou para mim também, foi bom. Se tivessem vindo de manhã, talvez ela me tivesse visto partir a cancela com o tractor. Que vergonha, meu Deus, que vergonha passei, quando afinal estávamos sozinhos, o tractor e eu. Mas não, para grande sorte minha, ela aparecia agora. Ferramentas. Lidando com alicates, com estacas a sério. Pois é, amiga! Sou homem ou não sou?
Tão-pouco os outros, alguns deles gente experimentada na vida, pareciam perceber que eu não saberia usar bem a chave de fendas, quanto mais conduzir o trator, que ali continuava meio desorientado. Mas talvez estivessem apenas a ser simpáticos, no fundo os americanos são pessoas quase iguais às outras. E eu, meio envergonhado, lá lhes perguntei o que é que achavam de Portugal, o que é que estavam a sentir. Algum tempo depois, evidentemente, já tinha confiança para os abordar de outra maneira:  o que é que é vocês acham de Portugal? O que é que estão a sentir?
Claro que sim. Mas mais e mais:  O que é que é o nosso interior para vocês? E o que é que é uma quinta biológica como a nossa? O que é que é? E, claro, cá o Portugal propriamente, de que maneira é que é que Portugal é visto na América, e tal?, Já provaram leitão?, Não vos faz impressão? Sabem que somos um país independente da Espanha? Ou pensam que somos uma província da Espanha, hã, Portugal, o que é que acham lá na América, o que é que é?
Bom, J., ainda não conhecemos muito, gostamos de Neizauréh, vamos para Vaizu, e Lissboah é simplesmente adorável.
Que resposta tão inteligente, para aquelas circunstâncias. O truque está aí. Percebi então como funciona a mente americana, que era o que eu mais queria na porra da vida. Ah, pois, Vaizu, Vaizu.
E que americana tão bonita vinha na comitiva, realmente, morena. Acho eu. Pareceu-me bonita. É um cabelo castanho escuro, mas luminoso, como que translúcido. Já tinha olhado para mim segunda vez, entretanto, mãe do Céu, novamente bom. Há aquele canela acobreado, que para mim é rei! Mas isso são casos raros. Não me parece que na América haja muito.
Na América há muito nas senhoras a cor de cabelo canela acobreado, ou não?, perguntei-lhe finalmente, desesperado. Não percebeu. Silêncio, silêncio. O que é que achas de Portugal? Pelezinha clara, modos suaves. Ah, adorável, estou a ver. Silêncio, pardais. Os americanos às vezes invadem países e depois fazem filmes sobre isso, acrescentei, é muito curioso.
Ela pareceu não gostar muito de mim e foi-se embora.
De um ramo, ao longe, alguma ave iniciava calma e tranquilamente o seu voo. Amor da minha vida! Não, não faças isso! E se viesses passear comigo no tractor? Os outros américas (que afinal estavam apenas de férias) que regressem à Vila com o vereador. Ou então eu depois ligo-te, vens cá e conduzes tu sozinha e eu fico só a olhar para ti.
Não deu.
Mas no dia seguinte reencontrámo-nos e deu (tratava-se também de prospecção de minério a comitiva queria aproveitar. Eu fiquei com a mais bonita. E à tarde pude explicar-lhe, na pastelaria, que até tinha concordado com a guerra no Afeganistão.
Que ideia, perguntava-me ela então, têm vocês da América? Há pessoas aqui que não suportam a América, certo? Mas gostam dos nossos filmes, não gostam? Etc.).