Muitas memórias me ocorreram quando inesperadamente ouvi aquela cantiga que começa assim «Havia uma muda que era uma vez contra o casar. Porque era ladra e folgada, não queria dar-se por conta de coisa roubada, gostava mais de roubar.»
Já há largo tempo vinha pensando fazer registo da história da Ladra Muda, e o que ouvi serviu-me de sinal de que era chegado o momento. Da verdade que sei usarei boa medida, ajudada pela fraca imaginação, e, de ditos cantigas e contos que ficaram, as melhores voltas, e o brilho, que o povo à história deu.
Se era ladra é porque roubava, e se era muda, é porque não falava. Vivia entre salteadores, acompanhando-os nas suas patifarias, desfrutando de uma vida vadia e boémia. O seu atrevimento rivalizava com o dos mais afoitos, e a sua beleza não destoaria da das donzelas mais distintas.
As belas e distintas, sobretudo se são mudas, têm sempre muitas contas a prestar, e esta, que buscava a liberdade, resolveu ser ladra, para, enquanto não fosse presa, não ter de se explicar. Assim, vendo-se livre, pôs em cada gesto toda a eloquência que os seus lábios não podiam ter.
Não foram poucos os que tentaram ganhar os seus favores, mas, os que mais se empenhavam eram, quase sempre, os que menos colhiam. Entre esses contam-se muitos dos rapazes mais avisados, filhos das melhores famílias, e até homens casados, que se prendiam pelo feitiço daquela figura misteriosa e altiva, inebriados pela promessa de vertigem e perdição prenunciadas no seu olhar e avalizadas por seus lábios silenciosos. Então, deixavam tudo e juntavam-se ao bando de malfeitores, distinguindo-se nas façanhas criminais enquanto, em vão, suspiravam pelas amorosas. E outros tantos, patifes convictos, parceiros de aventuras da Muda, nela reconheciam a graça e a ternura que sempre lhes haviam sido negadas, mostrando-se dispostos ao arrependimento e, com ela, a experimentar o amor e o bem.
Não era apenas por causa da natureza desassossegada e folgazã da bandida que estas arremetidas saíam frustradas, há que notar a têmpera resistente de que era feita, insubmissa às ordens de qualquer malhador. O que não poucas vezes acontecia era serem alguns incautos assaltados por ela, distinguidos com alguns momentos de licença, dos quais saíam com mais sobressalto do que proveito. Outras vezes, quando algum lhe agradava mais e cerceava menos, recatava-se com ele por bom tempo, em exclusivos e arrebatados amores.
Todos estes sucessos, e muitos outros, passou a vivê-los apenas em pensamento, desconsolada, depois de certo dia casar com um velho matreiro e rico, que a levou à certa. Perdia-se em longas ruminações, deambulando por entre os criados de casa, já sem por eles ser percebida, mais muda do que nunca.
Não encontrava nenhum motivo de alegria na sua nova vida, e até os piores momentos que vivera lhe eram agora saudosos. Mas vinham-lhe à memória, sobretudo, os golpes bem sucedidos, as festas desenfreadas em que todo bando participava, quando até para músicos havia dinheiro. Mas também aquelas em que não havia mais do que vinho e as canções e danças que eles mesmos cantavam e dançavam, às vezes na companhia de trovadores e músicos de ocasião, que encontravam nas mais safadas tavernas.
Era esta, cada vez mais, a sua única companhia. Sucessivamente, trazia à memória o Poeta Incompleto, cujas quadras recordava em momentos escolhidos, o Coruja, um confrade de poucas falas mas muita finura, com quem se entendia muitas vezes sem palavra nem gesto algum, os Profetas, dois irmãos que chefiavam o bando desde sempre, e todos os que cabiam naquele tempo quase parado que era a sua vida.
Recusar-se a seu marido era seu único prazer, o velhaco merecia-o, deu-lhe como destino a prisão que era aquela casa, depois de, por meio de informadores, surpreender o bando, capturar e chantagear a Muda.
Perante a teimosia de sua noiva, já quase em desespero, ocorreu-lhe que se pela opressão não a conseguia vergar, talvez pudesse socorrer-se da folia, a inclinação boémia da caprichosa dama era conhecida, e a sua fortuna, nunca até então celebrada, cobri-la-ia de todas as festas necessárias. Na noite da primeira, perante os mais distintos convidados, logo se percebe marcada transformação, agitados, eram os olhos dela que o diziam. Quando, porém, depois de vazia a casa, lhe assoma onde dormia, é a impotência de sempre que o invade. Observa-a, atento, enquanto ela cerra os olhos, respira lenta. Já fechadas, as pernas mais estreita.
A um grito, acorrem ao interior da casas, em baixo, os guardas do jardim. Como se o esperasse, a Muda ergue-se, nua, salvo o punhal de que não precisa, ele apenas tropeça até às jóias, sobre o móvel, e fica-se, encolhido. Se ainda lhe estende em oferta, desesperado, os adornos esplendorosos, logo os aperta, vencido, enquanto pela última vez a contempla, soberba, levantando os braços e empunhando a única coisa que lhe leva, o vestido.
Uma simples fagulha, plantada e ventilada durante tão distendidos festejos, foi a causa do fogo que, uma vez liberto, nem todos os guardas juntos conseguiriam deter. Ao descer pela varanda, a Muda sente já o calor da liberdade percorrer-lhe o corpo, enquanto mãos confiantes a amparam. É o Coruja, que a puxa para o silêncio da noite.
Trilham caminhos poeirentos, sem descanso nem palavra, lado a lado. Mas já remotos, fugidos, amontes, muda ela e ele pouco dado a conversar, irrompem em ansiado diálogo. Descobre-se traição, gesticula-se morte, grita-se amor.
A um olhar, ambos se calam e esperam, suspensos, até que lábios ardentes se soltam, como peixes sôfregos sobre areia branca e fina.
Pelos lábios expiram, por eles morrem-lhes as falas. Por eles retomam, ávidos, novas línguas intemporais. São eles que dizem fraces, muito suaves, sussopram cabelos, delicosos. E refriam, comprazidos, o sangue fervelhente que os desperta.
E que os excita ainda mais.
Sábeos, cantam loirus seios.
Insuflados, rebentoam peitos mudos.
E, entre frisos prateados, eclodem-lhes frutos raros em salvas de túlipa preta.
Por lábios suspiraram, flamejando, cheios e desnudos.
Libertados, entreabertam, lambebendo , bencarnados, lábidos de poémia bruta.
(De outros sucessos da vida da Ladra Muda tentarei dar boa conta, oportunamente.)
Já há largo tempo vinha pensando fazer registo da história da Ladra Muda, e o que ouvi serviu-me de sinal de que era chegado o momento. Da verdade que sei usarei boa medida, ajudada pela fraca imaginação, e, de ditos cantigas e contos que ficaram, as melhores voltas, e o brilho, que o povo à história deu.
Se era ladra é porque roubava, e se era muda, é porque não falava. Vivia entre salteadores, acompanhando-os nas suas patifarias, desfrutando de uma vida vadia e boémia. O seu atrevimento rivalizava com o dos mais afoitos, e a sua beleza não destoaria da das donzelas mais distintas.
As belas e distintas, sobretudo se são mudas, têm sempre muitas contas a prestar, e esta, que buscava a liberdade, resolveu ser ladra, para, enquanto não fosse presa, não ter de se explicar. Assim, vendo-se livre, pôs em cada gesto toda a eloquência que os seus lábios não podiam ter.
Não foram poucos os que tentaram ganhar os seus favores, mas, os que mais se empenhavam eram, quase sempre, os que menos colhiam. Entre esses contam-se muitos dos rapazes mais avisados, filhos das melhores famílias, e até homens casados, que se prendiam pelo feitiço daquela figura misteriosa e altiva, inebriados pela promessa de vertigem e perdição prenunciadas no seu olhar e avalizadas por seus lábios silenciosos. Então, deixavam tudo e juntavam-se ao bando de malfeitores, distinguindo-se nas façanhas criminais enquanto, em vão, suspiravam pelas amorosas. E outros tantos, patifes convictos, parceiros de aventuras da Muda, nela reconheciam a graça e a ternura que sempre lhes haviam sido negadas, mostrando-se dispostos ao arrependimento e, com ela, a experimentar o amor e o bem.
Não era apenas por causa da natureza desassossegada e folgazã da bandida que estas arremetidas saíam frustradas, há que notar a têmpera resistente de que era feita, insubmissa às ordens de qualquer malhador. O que não poucas vezes acontecia era serem alguns incautos assaltados por ela, distinguidos com alguns momentos de licença, dos quais saíam com mais sobressalto do que proveito. Outras vezes, quando algum lhe agradava mais e cerceava menos, recatava-se com ele por bom tempo, em exclusivos e arrebatados amores.
Todos estes sucessos, e muitos outros, passou a vivê-los apenas em pensamento, desconsolada, depois de certo dia casar com um velho matreiro e rico, que a levou à certa. Perdia-se em longas ruminações, deambulando por entre os criados de casa, já sem por eles ser percebida, mais muda do que nunca.
Não encontrava nenhum motivo de alegria na sua nova vida, e até os piores momentos que vivera lhe eram agora saudosos. Mas vinham-lhe à memória, sobretudo, os golpes bem sucedidos, as festas desenfreadas em que todo bando participava, quando até para músicos havia dinheiro. Mas também aquelas em que não havia mais do que vinho e as canções e danças que eles mesmos cantavam e dançavam, às vezes na companhia de trovadores e músicos de ocasião, que encontravam nas mais safadas tavernas.
Era esta, cada vez mais, a sua única companhia. Sucessivamente, trazia à memória o Poeta Incompleto, cujas quadras recordava em momentos escolhidos, o Coruja, um confrade de poucas falas mas muita finura, com quem se entendia muitas vezes sem palavra nem gesto algum, os Profetas, dois irmãos que chefiavam o bando desde sempre, e todos os que cabiam naquele tempo quase parado que era a sua vida.
Recusar-se a seu marido era seu único prazer, o velhaco merecia-o, deu-lhe como destino a prisão que era aquela casa, depois de, por meio de informadores, surpreender o bando, capturar e chantagear a Muda.
Perante a teimosia de sua noiva, já quase em desespero, ocorreu-lhe que se pela opressão não a conseguia vergar, talvez pudesse socorrer-se da folia, a inclinação boémia da caprichosa dama era conhecida, e a sua fortuna, nunca até então celebrada, cobri-la-ia de todas as festas necessárias. Na noite da primeira, perante os mais distintos convidados, logo se percebe marcada transformação, agitados, eram os olhos dela que o diziam. Quando, porém, depois de vazia a casa, lhe assoma onde dormia, é a impotência de sempre que o invade. Observa-a, atento, enquanto ela cerra os olhos, respira lenta. Já fechadas, as pernas mais estreita.
A um grito, acorrem ao interior da casas, em baixo, os guardas do jardim. Como se o esperasse, a Muda ergue-se, nua, salvo o punhal de que não precisa, ele apenas tropeça até às jóias, sobre o móvel, e fica-se, encolhido. Se ainda lhe estende em oferta, desesperado, os adornos esplendorosos, logo os aperta, vencido, enquanto pela última vez a contempla, soberba, levantando os braços e empunhando a única coisa que lhe leva, o vestido.
Uma simples fagulha, plantada e ventilada durante tão distendidos festejos, foi a causa do fogo que, uma vez liberto, nem todos os guardas juntos conseguiriam deter. Ao descer pela varanda, a Muda sente já o calor da liberdade percorrer-lhe o corpo, enquanto mãos confiantes a amparam. É o Coruja, que a puxa para o silêncio da noite.
Trilham caminhos poeirentos, sem descanso nem palavra, lado a lado. Mas já remotos, fugidos, amontes, muda ela e ele pouco dado a conversar, irrompem em ansiado diálogo. Descobre-se traição, gesticula-se morte, grita-se amor.
A um olhar, ambos se calam e esperam, suspensos, até que lábios ardentes se soltam, como peixes sôfregos sobre areia branca e fina.
Pelos lábios expiram, por eles morrem-lhes as falas. Por eles retomam, ávidos, novas línguas intemporais. São eles que dizem fraces, muito suaves, sussopram cabelos, delicosos. E refriam, comprazidos, o sangue fervelhente que os desperta.
E que os excita ainda mais.
Sábeos, cantam loirus seios.
Insuflados, rebentoam peitos mudos.
E, entre frisos prateados, eclodem-lhes frutos raros em salvas de túlipa preta.
Por lábios suspiraram, flamejando, cheios e desnudos.
Libertados, entreabertam, lambebendo , bencarnados, lábidos de poémia bruta.
(De outros sucessos da vida da Ladra Muda tentarei dar boa conta, oportunamente.)
No comments:
Post a Comment