Gosto de fazer compras no comércio tradicional. As grandes superfícies são demasiado impessoais, frias mesmo, e eu não aprecio particularmente fazer parte de uma multidão de anónimos que se evitam, que se escondem na confusão. Prefiro percorrer a baixa (do Porto), andar de loja em loja com as mãos carregadas de sacos, e desfrutar da oportunidade de me cruzar e encontrar com quem passa, conhecido ou desconhecido, com as pessoas das lojas, ou com quem apenas está a ver os outros passar. Na baixa cabem todos.
Hoje tirei o fim de tarde para ir às compras. A minha última paragem foi na mercearia da sra. Ricardina. Enquanto pesava alguma fruta, uma garota com um ganchinho azul ia tentando convencer a mãe a comprar umas pulseiras e um chocolate. As pulseiras eram iguais às que todas as miúdas usam, e o chocolate era normalíssimo também. A mãe não parecia nada inclinada a satisfazer aqueles caprichos, provavelmente mais por uma questão de princípio do que por causa de dificuldades sérias. Mas as suas respostas, por vezes verdadeiros lamentos, soavam à conversa da crise. É que a crise vem acompanhada de uma música própria, que contagia toda a gente, incluindo quem, por ventura, não lhe sente os efeitos.
Não é o meu caso. Enquanto o diálogo de surdos entre e mãe e filha prosseguia, dei por mim a pensar em todas as coisas a que tive que dizer não, só durante a tarde de hoje, como uma mala nova para substituir a que costumo usar, já velhota, ou uma torradeira que ando a cobiçar há meses. E preferi nem olhar para a montra de uma livraria que fica umas ruas antes da mercearia.
A senhora bem se esforçava por ir chamando a atenção da pequena para outras coisas, mais importantes e úteis, que levava a pensar nela. Mas esta, sem chegar nunca a armar uma daquelas birras medonhas, dava mostras de saber cumprir o seu papel. E não desarmava.
Nós é que não nos podemos dar a esse luxo. Temos de nos ir conformando com a redução nos gastos. De há uns anos a esta parte, tudo está mais caro, sem que os ordenados tenham acompanhado a inflação. Depois, cada um tem os seus desafios específicos. O meu passa por não pôr de parte o sonho de vir a ter casa própria, sendo que, uma vez que sou uma professora deslocada, não trabalho no local onde gostaria de viver no futuro (ou melhor, onde gostaríamos, já que a decisão não é só minha). E isso significa que tenho de suportar o custo da renda da casa onde estou presentemente.
A necessidade de poupança vai-se impondo em todas as decisões que envolvam a realização de despesa, grandes ou pequenas, em prejuízo de hábitos adquiridos. Ainda não pus em causa o cafezinho, mas já não compro o jornal diariamente, tento fugir da pastelaria, dos chás com as amigas, dos espectáculos, de um ou outro DVD que ia comprando, etc. Hoje, por exemplo, antes de me dirigir à mercearia, passei por um carrinho de castanhas assadas, que me foi tentando cativar enquanto atravessava a praça onde estava. Resisti, apesar de um cartuchinho vir mesmo a calhar numa tarde fria como a de hoje (e ainda bem que resisti, porque no fundo da rua estava um sem-abrigo a olhar para quem passava, e fico especialmente embaraçada quando trago comida e me deparo com alguém necessitado).
Entretanto, a menina parecia estar quase convencida, se bem que o chocolate ainda a fizesse choramingar. E a mãe, calma mas determinada como só elas, ia lembrando que não se pode ter tudo, que muita gente nunca tem oportunidade de comer doces e elas já levavam umas sobremesas e o chocolate para o pão.
Quando mãe e filha saíram e se fez silêncio, toda aquela conversa, que começara por me dar pena, ficou a martelar na minha cabeça, não me permitindo esquecer as minhas próprias dificuldades, em particular a jornada de renúncias em que se transformara uma tarde de compras. São sacrifícios relativamente modestos, mas depois de tanta disciplina e bom senso - apesar de concordar com aquela mãe - e depois de tanto chocolate invocado, fiquei… descompensada.
Acabei por abrir a tampa de um boião de bombons, dos antigos e baratinhos, e tirei uma mão-cheia deles. Cá fora, subi a rua, dei metade ao sem-abrigo e concedi-me o luxo de comer os outros. Toda a gente precisa de um doce, de vez em quando.
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